A parte tributária da proposta de Orçamento Suplementar para 2020
Altera? Ai altera, altera!
Para já a grande questão inicial é a de saber se a Proposta de Lei é imutável ou não, no sentido de limitar certas alterações com impacto do lado da evolução da receita ou da despesa[1]. Apesar da controvérsia e de posições até contraditórias no tempo[2], o consenso aparenta ir no sentido da total liberdade de alteração pelo Parlamento[3].
Dito de outro modo. A existência de uma regra de travão orçamental para alterações fora do quadro orçamental é um dado. Mas quando o Governo decide ir a jogo com um orçamento suplementar, que nem sequer reafecta apenas a despesa ou a receita prevista, como um orçamento meramente retificativo, mas altera sim os valores de receita e despesa (aumentando-os), porque justificada ou injustificadamente falhou as previsões iniciais sobre as suas reais necessidades, coloca em causa o consenso orçamental precedente. E com isso torna passível de discussão toda a arquitetura orçamental do ano, pelos representantes dos “sujeitos passivos”, aqueles que realmente vão pagar a conta. Fica pois aberta a discussão de todo o novo contexto orçamental, considerando despesas e receitas e, portanto, para o bem e para o mal, também as regras fiscais.
Neste contexto, da proposta de Lei correspondente ao Orçamento Suplementar para 2020, a votar no próximo dia 19, decorrerão, para já, em caso de aprovação sem alterações, as alterações tributárias a seguir listadas.
Crédito Fiscal Extraordinário de Investimento II (CFEI II)
Dedução à coleta de IRC (com o limite de 70% desta e com o limite de um milhão de euros) de 20% dos investimentos com a aquisição de ativos fixos tangíveis, ativos biológicos não consumíveis e ativos intangíveis.
As despesas deverão ocorrer entre 1 de julho de 2020 e 30 de junho de 2021 e o valor do crédito não usado por insuficiência de coleta nos exercícios do investimento (por regra, 2020 ou 2021) pode ser reportável por 5 exercícios.
Usando do incentivo, o sujeito passivo não deverá, num período de 3 anos, usar da faculdade de fazer cessar contratos individuais de trabalho por despedimento coletivo ou extinção do posto de trabalho.
Prejuízos fiscais de 2020 e 2021
Os prejuízos fiscais destes exercícios (entende-se que os iniciados em ou após 1 de janeiro de cada ano) podem ser reportados por 10 exercícios, ao invés dos atuais 5. Para as micro empresas e PME’s mantém-se o atual prazo de reporte, o qual é já de 12 exercícios.
O limite à dedução de prejuízos fiscais é alargado de 70 para 80% do lucro tributável apurado, sempre que a diferença resulte de prejuízos fiscais apurados (nos exercícios iniciados) em 2020 ou 2021. Quer isto dizer que o lucro tributável que não pode ser neutralizado por efeito do reporte de prejuízos desce de 30 para 20% do seu valor.
Dado que há todo o interesse em usar os prejuízos fiscais mais antigos, seria curial que a lei viesse já clarificar que este excesso pode ser usado de imediato, ainda que estando a ser deduzidos prejuízos fiscais mais antigos e, portanto, anteriores a 2020 ou a 2021.
Suspensão do prazo de caducidade dos prejuízos fiscais anteriores
Aliás, nesse sentido, os exercícios fiscais de 2020 e 2021 são desconsiderados para efeitos de contagem do prazo de caducidade do reporte dos prejuízos fiscais ainda não deduzidos até ao exercício de 2020 (de 5 ou 12 anos). Também por essa razão seria estranho que o tal excesso de 10 pontos percentuais ficasse a aguardar o uso dos prejuízos de 2020 e de 2021, ou que se impusesse à entidade o uso prioritário dos prejuízos deste ano, colocando em causa a utilização de prejuízos de exercícios precedentes em tempo útil (o do prazo de reporte, por regra, de 5 anos).
Pagamentos por Conta
Em 2020, os pagamentos por conta poderão ser reduzidos ou mesmo totalmente evitados.
Serão evitados se a média mensal da faturação do primeiro semestre de 2020 comunicada pelo E-fatura tiver uma quebra mínima de 40% face à média verifica no período homólogo de 2019; ou ainda se 50% do volume de negócios do sujeito passivo no período de tributação anterior corresponder à sua atividade alojamento, restauração e similares (neste caso, a confirmar por contabilista certificado).
E serão reduzidos a 50%, se no primeiro semestre de 2020 a média mensal da faturação comunicada pelo E-fatura tiver uma redução mínima de 20% face à média do mesmo período de 2019.
Caso aquela redução possa vir a implicar o não pagamento (por conta) de mais de 20% do valor que, em condições normais, o teria sido, então esse valor deverá ser pago até à data limite para o último pagamento por conta (20/12/20), para obviar a ónus ou encargos e sempre com validação por contabilista certificado.
Reestruturações em 2020 de PME’s ao abrigo do regime da neutralidade fiscal
A sociedade incorporante não será objeto de Derrama Estadual nos primeiros três períodos de tributação e no mesmo período poderá deduzir os prejuízos fiscais das sociedades incorporadas que lhe sejam transmitidos por efeito da fusão, sem qualquer limitação, desde que:
a) As entidades sejam qualificadas como micro, pequena ou médias empresas;
b) Nenhuma decorra de cisão realizada nos três anos anteriores;
c) A atividade principal das entidades fusionadas seja substancialmente idêntica;
d) Estas entidades tenham iniciado a respetiva atividade há mais de 12 meses;
e) Não sejam distribuídos lucros durante os três exercícios contados da data de produção de efeitos do benefício (dedução do prejuízo);
f) As entidades não estejam em situação de relações especiais entre si;
g) Todas tenham a sua situação tributária regularizada à data da fusão.
Havendo distribuição de lucros antes de decorrido aquele período de três anos, será adicionado ao IRC desse período de tributação o valor correspondente à diferença entre os prejuízos deduzidos e aqueles que teriam sido deduzidos na ausência do benefício, acrescido de 25 % e, bem assim, se aplicável, do montante de Derrama Estadual que tiver deixado de ser pago, acrescido agora de 15 %.
Regime especial de transmissão de prejuízos fiscais aplicável a adquirentes de empresas consideradas em dificuldades
Será criado um regime de transmissão de prejuízos fiscais apurados por PME’s a deduzir pela sociedade adquirente, caso a entidade adquirida o seja até 31 de dezembro de 2020, caso esta tenha passado a ser considerada uma “empresa em dificuldades[4] e que, portanto, não o fosse no período de tributação de 2019.
Neste caso os prejuízos fiscais da adquirida poderão ser deduzidos pela adquirente na proporção da sua participação no capital social daquela, até ao máximo de 50% do lucro tributável desta.
Aquela dedução fica condicionada à:
a) Aquisição, direta ou indireta, da maioria do capital social com direito de voto;
b) Manutenção da participação, de modo ininterrupto, por um período não inferior a três anos;
c) Não distribuição de lucros, pela adquirida, no mesmo período;
d) Não cessação, pela adquirida, de contratos individuais de trabalho por despedimento coletivo ou por extinção de postos de trabalho durante idêntico período.
Limitação extraordinária de pagamentos por conta de 2020 em IRS
Os sujeitos passivos titulares de rendimentos da Categoria B, que estando a isso obrigados, não procedam ao pagamento do primeiro e segundo pagamentos por conta, poderão regularizar o montante em falta até à data limite para o terceiro pagamento por conta (20/12/20), sem quaisquer ónus ou encargos.
Adicional de solidariedade sobre o setor bancário
Apesar da contribuição extraordinária (e temporária) em vigor já por uma década, será agora criado um adicional de solidariedade sobre o setor bancário, devido por instituições de crédito e sucursais destas entidades em Portugal, o qual incidirá:
a) À taxa de 0,02%, sobre o passivo apurado e aprovado pelos sujeitos passivos, deduzido quer dos elementos do passivo que integrem os fundos próprios, quer dos depósitos abrangidos pela garantia do Fundo de Garantia de Depósitos e pelo Fundo de Garantia do Crédito Agrícola Mútuo;
b) À taxa de 0,00005%, sobre o valor nocional dos instrumentos financeiros derivados fora do balanço e que seja apurado pelos sujeitos passivos.
A liquidação deste adicional será efetuada pelo sujeito passivo até ao último dia do mês de junho do ano seguinte ao das contas a que respeitar o adicional de solidariedade, devendo ser pago dentro desse prazo.
No entanto, a proposta, por necessidades de arrecadação imediata de receita, introduz uma norma transitória que lembra a norma inicial da verba 28 da Tabela Geral de Imposto do Selo (hoje adicional, mais um, ao IMI). Assim, em 2020 e em 2021, a base de incidência deste (novo) adiciona terá por referência:
a) a média mensal dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre de 2020, no caso do adicional de solidariedade devido em 2020;
b) e nas contas relativas ao segundo semestre deste mesmo ano, para o adicional de solidariedade devido em 2021.
A liquidação e pagamento dos dois adicionas iniciais deverão ser efetuadas até ao dia 15 de dezembro de 2020 e 2021, respetivamente.
Para além do carater discriminatório (comum a todas as contribuições extraordinárias), o adicional proposta parece ter vícios agravados: a norma transitória inicial já demonstra bem que a contribuição não o é (transitória ou temporária), a sua fundamentação é inconsistente pois a isenção (incompleta) de IVA não é um benefício, já suscita tributação em selo, não se vê como uma penalização com este fundamento possa passar o crivo da constituição e das normas europeias sobre IVA e a isenção de IVA não é inevitável[5]. Mais, dada a sua configuração não poderá deixar de ser dedutível em IRC.
Regime excecional de pagamento em prestações para dívidas tributárias e dívidas da Segurança Social
As dívidas tributárias vencidas ou relativas a factos tributários ocorridos durante o período de 9 de março a 30 de junho de 2020 e as dívidas de contribuições mensais para a Segurança Social vencidas nesse período, poderão ser incluídas em plano prestacional sem a prestação de garantias adicionais e sempre com prazo de regularização nunca inferior ao final do ano em curso.
Altera?
Como referido a proposta de Lei será votada no próximo dia 19 e poderá ainda ser passível de várias alterações, a começar pelo próprio défice. A contração prevista para o PIB (6,9% e que justifica o défice previsto de 6,3%), acompanhada pela previsão da Comissão Europeia, é inconsistentes com previsões bem mais pessimistas do Banco de Portugal (9,5%), da OCDE (9,4%) e do Conselho de Finanças Públicas (7,5%).
[2] https://eco.sapo.pt/2020/06/17/norma-travao-o-que-fez-o-ps-nos-retificativos-do-tempo-da-troika/
[4] Nos termos das orientações relativas aos auxílios estatais de emergência e à reestruturação concedidos a empresas não financeiras em dificuldades, previstas da Comunicação da Comissão Europeia.
[5] Ver Rita de la Feria em 2017: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2909927
Junho 2020
Apenas para efeitos informativos
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